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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

sexta-feira, outubro 09, 2015

Crónica da morte

Há uma altura da vida em que te apercebes que és um ser finito. Em que tens a real noção de que a vida acaba. Não só a dos outros, a que vais assistindo, mas que a tua própria vida vai acabar e passarás para um novo estádio, ou não, mas que vais largar esta casca em que nasceste e que tudo o que fizeste, quem amaste, cada pormenor, cada momento, se perdem nas areias do tempo.



Quando vives duas vidas numa só, como é o meu caso, a sensação de que consegues ultrapassar tudo é quase sempre presente. Afinal, vivi metade da minha vida como uma pessoa que não era e estou a viver agora quem sou na realidade. Mas esta realidade, como qualquer outra, é finita, E só agora tenho essa perfeita noção.

As pessoas, no seu geral, tendem a "imaginar" que a vida de uma mulher trans, como eu, é algo estranho, misterioso, que sou uma freak, uma aberração, e por aí fora. Essa limitação que vejo nos outros faz-me confusão, pois nunca fui assim, nunca pensei o mundo e as outras pessoas assim. No fundo, só queria ter uma vida chamada de "normal", como qualquer outra mulher. Mas a sociedade em que vivemos não permite que eu viva a minha vida como uma mulher dita "normal".

Eu sou diferente de qualquer outro ser neste mundo, como qualquer um de nós. Mas sou igual no ter querido casar-me, ter filhos, uma casa, etc., etc., etc. No fundo, até sou mais "normal" do que muitas que dizem e acham que o são e não são transexuais. Sendo assim, caio no fundo do poço da certeza absoluta de que nunca vou conseguir ter uma vida dita "normal". 

Vou ser sempre discriminada. Vai haver sempre preconceitos. Vão sempre haver humilhações. Vão sempre haver agressões. Vai haver sempre assédio. Estou moral e emocionalmente certa do que digo, por tudo o que passei ao longo destes últimos 10, 15 anos. E agora tenho a certeza absoluta de que sou finita. De que morro um pouco todos os dias. E que o meu coração murcha muito ao ver as atitudes e "expressões várias" de pessoas que conheço, ou que pensava conhecer.

Fui obrigada a deslocar-me para o limbo. Não sou nada, nem deixo de ser nada. Assim não chateio nem incomodo ninguém. Não porque eu o queira, mas porque os outros me mandaram para aqui. Uma pessoa como eu sou não pode viver calada, em silêncio. Não pode viver amordaçada. Não pode viver como se estivesse já morta. Preciso de ar, de emoção, de sorrisos e lágrimas, de sentir. Agora já não há dor. Estou preparada para ir. 

Não consegui atingir nenhum dos objectivos a que me propus. Não sei se sou uma falhada, se não, se foi por minha única e exclusiva culpa e responsabilidade (de certeza que há quem ache que sim), se foi metade isto e metade a incapacidade e falta de vontade de os outros me ajudarem. Sim, ninguém vive sozinho, E ou te encaixas numa sociedade ou não. E a tua vida e as tuas vivências e experiências dependem exclusivamente disto.

Não me encaixei, obviamente. Também sou uma pessoa difícil de encaixar num padrão. Nem gosto de padrões sequer. E apercebi-me que vou morrer. É um certo choque estranho este da noção de que vais desaparecer da face da terra. Tenho medo de morrer, como acho que qualquer pessoa tem. Principalmente medo do sofrimento que leva à morte. Espero ter uma morte indolor. Era só o que queria. Sim, porque dores já tenho muitas, pelo menos que seja poupada na morte.

Podia ter escrito um post, uma crónica toda pomposa, toda cor de rosa, mas não me apetece. Nem estou nessa onda. Essa onda já passou há muito tempo. Apeteceu-me escrever sobre a morte. Ou parte do que ela significa: o fim de mim. Para quem não gostou, temos pena. Esses que fiquem descansados, que eu, realmente, não sou eterna.

---> Foto: eu no Alentejo, Julho de 2015.