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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

quarta-feira, maio 28, 2014

As duas vidas de uma trans

Há muito tempo que penso no assunto, e acontecimentos recentes fizeram-me revoltar ainda mais contra a transfobia e transmisoginia de que sou vítima, bem como muitas outras mulheres trans que conheço (e não só). Como não posso falar por ninguém a não ser eu própria, vou reflectir um pouco sobre o facto de, após a minha transição, uma esmagadora maioria de pessoas não só me continuarem a tratar no masculino (algo que nunca fui) e, tão ou mais grave, me chamarem pelo nome de baptismo.

Confesso que o que despoletou a minha vontade de escrever directamente sobre este assunto foi uma peça jornalística que li online, passada em Inglaterra. Esta peça, apesar de se referir a casos do reino de sua majestade, reflecte perfeitamente o que se passa por cá, e provavelmente pela maior parte dos países europeus (e não só). Por um lado, apenas são referidos casos de mulheres trans com cirurgia de correcção sexual feita, como se o culminar da transição fosse esse para todas as mulheres trans, fazendo com que as mulheres trans que não se operaram porque não quiseram, não puderam por motivos de saúde ou monetários, ou por qualquer outra razão, são mulheres diferentes das outras.

Ou seja, antigamente tínhamos as mulheres cisgénero de um lado e as mulheres trans do outro. Agora já temos as cisgénero, as operadas e as outras. Dentro do próprio universo trans há cada vez mais discriminação entre as "verdadeiras" transexuais (as operadas) e as "falsas" transexuais, ou as outras, as que fizeram a sua transição e não fizeram a cirurgia de correcção sexual. Transfobia de mulheres trans contra mulheres trans. E isso leva a que as mulheres trans operadas discriminem as outras e achem que têm mais direitos apenas porque tomaram uma opção (sim, a cirurgia é uma opção) que as outras não tomaram. Só que todas nós somos mulheres trans e termos feito a cirurgia ou não não se reflecte em nada na nossa vida do dia-a-dia. Apenas na vida privada e no bem-estar pessoal.

O título desta crónica, "as duas vidas de uma trans" tenta fazer com que as pessoas se apercebam e fiquem alerta para vários pontos: ser-se trans não é uma opção, nem uma escolha; ser-se trans implica que um dia deixamos de viver num determinado género e transicionamos para o outro; ser-se trans não implica nunca uma cirurgia de correcção de sexo; ser-se trans implica que, quando transicionamos, as pessoas nos tratem com o pronome correcto e pelo nome que escolhemos para nós.

Eu acabei a minha transição ao fim de uns longos 12 anos, quando, finalmente, pude e consegui mudar o meu nome e o meu género para aqueles que deveriam ter sido sempre. Mas as pessoas não respeitam isso, em nada. Se possível, fazem o oposto: desrespeitam-te. Tratam-te como um homem, porque afinal "nasceste homem" - ninguém nasce homem, nem mulher. As pessoas nascem bebés. Apesar de já teres feito todas as alterações que desejavas e oficialmente os teus documentos já respeitarem quem tu és, quem não os respeita e te desrespeita são os outros. Tratam-te pelo nome de baptismo, o que, no meu caso, já me dá vontade de desatar aos palavrões e bofetadas em quem se atrever a voltar a fazê-lo.

Se esperas que a cirurgia de correcção sexual altere alguma coisa, como já referi atrás, não, nem por isso. Ninguém sabe o que tens no meio das pernas, e convém frisar bem que ninguém tem nada com isso a não seres tu própria, logo levas por tabela na mesma, a não ser os poucos casos em que a mulher é "passável" (implica, supostamente, que "ninguém diria que não nasceste mulher", apesar de eu discordar deste termo). Ou seja, és discriminada socialmente por seres quem és, e és discriminada pelas outras mulheres trans, porque elas são operadas e tu não. Elas são mulheres, tu deves ser qualquer coisa "inbetween".

O que as pessoas têm que perceber é que tu não és aquela pessoa que estava nos antigos documentos, naquelas fotos, e que aquele nome nunca te disse nada, nunca te identificaste com ele. A única coisa que tu tens em comum com a identidade antiga é a essência. Eu continuo a ser a mesma pessoa na minha essência. Não me transformei noutra pessoa só porque assumi quem eu era: uma mulher trans.

É imperioso que as pessoas, sejam família, antigos colegas ou colegas de trabalho, conhecidos, etc., aprendam a olhar para ti como tu és e te respeitem como és agora. Aquela outra pessoa foi noutra vida, não corresponde a ti. O que corresponde a ti é como estás agora, o nome e o género que constam do teu cartão do cidadão. As pessoas têm que aprender a respeitar. Porque elas estão habituadas a ser respeitadas, mas não estão nem aí para respeitar uma pessoa que acham, no mínimo, estranha, e que julgam sem conhecer tudo o que está por detrás da história de vida dessa pessoa.

Já escrevi e frisei aqui imensas vezes que, acima de tudo, nós, eu, exigimos respeito. Mas, na prática, o que existe é desrespeito, preconceito e discriminação. Vindos de todos os lados.

Eu sou a Lara, 42 anos, 12 de transição, mulher transexual. E é assim que quero e tenho o direito a ser tratada. O passado passou. Acabou. Morreu.
 
 
 Foto © Pedro Medeiros
 Projecto AGUARELA - Combate à Discriminação pela Orientação Sexual e Identidade de Género
 Campanha de arte pública, a decorrer de 17 de Maio a 30 de Junho de 2014
 Organização: Saúde em Português