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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

quinta-feira, abril 17, 2014

Fiel a mim própria

O que eu sou para ti tu não és para mim. A maior parte da nossa vida funciona desta forma. Em mais um período de profunda reflexão, surgiram-me acontecimentos de há dez anos atrás. Foi na altura em que, supostamente, eu tinha tudo, mas afinal não tinha nada.

Fala-se muito e escreve-se demais. Supõe-se que as coisas na vida de uma mulher trans se passam de certa forma, mas só quem o é sabe o que se passa. A vida familiar é extremamente complicada na maioria dos casos, a amorosa nem se fala e a nível laboral, muito poucas conseguem fugir ao estigma da prostituição.



Como já escrevi aqui várias vezes, a minha família foram e são as muito poucas pessoas com quem me cruzei na vida e que empatizaram comigo e eu com elas. Algumas mantém-se lá, outras não. Mas, como sabemos, cada um tem a sua vida, e as circunstâncias desta afastam-nos quase sempre. Principalmente se nós (eu) formos mulheres transexuais. Família de sangue é algo de que nunca falei e não é agora que o vou fazer, também porque não há nada a dizer. A minha família real é a que está no meu coração.

A nível amoroso é algo equivalente há uns 50 anos atrás. Os preconceitos são os mesmos, a discriminação a mesma, o estigma o mesmo. Os mais que batidos clichés do homem que se interessa por uma mulher trans (como eu) é gay, todas as transexuais são trabalhadoras sexuais, ninfomaníacas no mínimo, sermos tratadas como "os" e não "as", tudo, tudo se mantém. Das duas uma, ou tens muita sorte na vida (sim, porque também é preciso ter sorte), ou passas mais de metade da tua vida a lutar contra estes preconceitos e estupidamente à espera ou à procura que te apareça um homem diferente, que pense de maneira diferente.

Há dez anos atrás acabou o único "relacionamento" que tive que durou mais que um ano. Coloquei relacionamento entre aspas, porque ter alguém com quem quase não se conversa, com quem nos encontramos duas ou três vezes por semana e basicamente só para sexo não se coaduna com o que eu considero ser um relacionamento amoroso sério. Ah, tirando o facto de ele não sair à rua comigo, de ir para os copos com os amigos aos fins-de-semana, ah, e nunca ir ter comigo quando havia jogo do Sporting. Pois é, até nisso o amor pela bola era mais forte.

Isto até podia dar vontade de rir, se eu não me tivesse sentido tão "estranha" no meio daquela relação sui generis. E que só durou o que durou porque o sexo entre nós era muito bom, tenho que reconhecer. E não, ele não é gay, é hétero, e não, não me tratava como "o", aliás, nunca teve um acto falhado e sempre me tratou como a mulher que sou. Pelo menos numa coisa aquela abécula acertou. Eu gostava dele. Não vou dizer que o amava, porque não podes amar quem não conheces. Eu não o conheci porque ele não o quis. Tudo aquilo teve sempre uma morte anunciada. Eu é que não queria ver. Era demasiado inexperiente. Ainda via tudo cor-de-rosa. Era parva e naive.

Se fosse hoje, nunca me sujeitaria, que foi o que na realidade aconteceu, a uma coisa deste tipo. Sexo não é tudo, até pode ser muito pouco, ter alguém para não estar sozinha não faz parte do meu feitio, e hoje em dia não admito as faltas de respeito que ele teve comigo na altura. Sinceramente, ter vergonha de mim??? Ter vergonha de sair comigo à rua??? Ter vergonha que os amigos e família soubessem??? Pois é. É mesmo assim. E nada disso mudou. Pelo que vejo e observo, hoje em dia as coisas continuam literalmente iguais, quando não são piores.

Nós, mulheres trans "não passáveis", enfrentamos um tipo de discriminação ainda mais forte e diferente daquelas que são "passáveis" e autênticas capas de revista. Somos travestis, homens com mamas, quer dizer, quando não perguntam se não é um soutien almofadado, somos "os". E nenhum homem hétero quer ter um relacionamento com uma mulher assim. Sim, porque essa dos gays se interessarem por nós, além de ridículo, já ninguém aguenta. É assim: um homem gay sente-se sexualmente atraído por outros homens, certo? Pois, e eu, nós, somos mulheres, ok? Logo, uma mulher trans não terá relacionamentos com homens gay, certo? Pronto, a ver se entendem.

Bem que eu e muitas outras mulheres trans tentamos desconstruir estes preconceitos e pré-conceitos, mas é extraordinariamente difícil, pela forma como estão enraizados e têm passado de geração em geração. E esse homem, meu ex-qualquer-coisa não fugia à regra. As coisas acabaram e cada um seguiu o seu caminho. Não me arrependo de me ter relacionado com ele. Acho que, no fundo, ele até é uma boa pessoa. Mas era mais aquilo que nos separava do que aquilo que nos unia. E ele era limitado demais, limitava-se a ele próprio, como a esmagadora maioria das pessoas, não só homens faz.

Pensar nisto tudo agora traz-me alguma tristeza. Porque conheci várias pessoas ao longo da minha vida, conheço hoje em dia algumas pessoas, mas a minha transexualidade é um impedimento para algo mais se desenvolver. Mesmo que um diga que não, que gosta de mim como sou, que me aceita e me respeita como sou. Isso não é, de todo, verdade. A verdade, no meio disto tudo, é que socialmente, familiarmente, amorosamente e por aí fora, vou sempre ser vista como alguém que nem devia existir. Que devia morrer de vez e ser esquecida. Esta é a realidade.

Não há príncipes encantados, não há famílias cor-de-rosa, e a sociedade é uma merda. Pois é. Agora temos duas opções: ou vivemos com isso, ou não. Tento sempre dar alguma esperança e alento a quem me lê, mas agora torna-se cada vez mais difícil. Porque não há perspectivas, porque o ódio contra nós é cada vez maior, a transfobia cresce a olhos vistos.

No meio de tudo isto, resta-me a mim e a vocês mantermo-nos fiéis à única coisa que realmente vale a pena: nós próprias.
 
---> Make Up Artist, Cabelos e Fotografia: Pedro Miguel Silva (2012)