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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

sábado, março 15, 2014

As aparências desiludem

O que interessa são as aparências. Não aquilo que tu és, mas aquilo que pareces ser. Nunca, como hoje, o mundo gira à volta desta aparente dualidade. Se eu sou linda, mas burra que nem uma porta ondulada, acabo por ser valorizada por essa suposta beleza e não pela pessoa, pelo ser humano que sou. Se eu tenho a ousadia de me mostrar como sou, sou total e completamente ostracizada.

Este paradigma da aparência versus essência aplica-se a tudo. O falso moralismo, a cretinice, a hipocrisia, a ignobilidade estão cada vez mais presentes e até ultrapassam o simples facto de eu ser uma e aplicam-se a todos. E isto viu-se ontem na Assembleia da República.

Algo tão natural como ter pais - e pais aqui são, além de ter um pai e uma mãe, ter duas mães ou ter dois pais - é negado a um enorme segmento da população por criaturas que não têm nem consciência, nem vergonha na cara e muito menos coluna vertebral.

Desde sempre que deveria ser normal (odeio esta palavra, mas não encontro outra) e natural duas mães terem bebés, dois pais terem bebés, como é "normal" um pai e uma mãe terem. Todo o "complicadíssimo" processo que leva a isto é tão simples como respirar. Faz parte da natureza humana querer-se ter filhos. Não é a nossa orientação sexual que define isso. E este direito inalienável a qualquer pessoa, qualquer casal, deveria estar consagrado naturalmente e na constituição de qualquer país.



É incrível e totalmente absurdo ainda estarmos a falar de direitos humanos em pleno século XXI. Como o meu direito a ser quem sou, a exprimir-me como quero, sem ser humilhada, achincalhada, e tratada como uma aberração só porque sou uma mulher trans. Nasci assim, assumi e assumo quem sou, sofri bullying a minha vida toda e continuo a sofrer. A diferença agora é que o bullying que me aplicam se reveste de formas diferentes, mas não menos cruéis e humilhantes que aquelas de que eu era vítima na altura do liceu e por aí fora.

Sendo uma mulher madura nada muda. E se muda, muda para pior. Não há nada pior que o ser humano, que a sua crueldade, egoísmo e pura maldade. Seja por que motivo for, há sempre alguém pronto a tratar-me como "o senhor", a rir-se de mim com a cumplicidade de outra quando entro no café, a olhar-me de cima a baixo com desdém quando vou ao supermercado. É que eu não sou, para esta sociedade de merda, tão pessoa, tão mulher, tão digna como qualquer outra.

Fala-se muito de discriminação. Pois, mas devia-se falar mais. É que a discriminação reverte-se de muitas formas e o bullying diário é uma delas. E muito mais em pessoas que, de alguma forma, alteram o seu aspecto para que este se coadune mais com aquilo que elas são. Não que "pensam que são", como já me disseram. Ou outra igualmente boa, "você é gay ou mulher, mulher?". Amigo, gay é um homem que gosta de homens. Se eu sou mulher, sou mulher, não gay, né? É que mulher gay soa assim um pouco estranho.

E este bullying reflecte-se ainda mais quando a nossa aparência "não é passável", como se diz muito no Brasil. Eu não sou passável. Partindo do princípio que "ser-se passável" é passar por mulher, eu não sou. Eu sou mulher, não quero passar por mulher. Mas cada cabeça sua sentença, e aquelas mulheres trans que têm a sorte de serem "passáveis" acabam por, não só terem a vida muito mais facilitada, como acabam por não ser vítimas de bullying diário.

Ninguém as olha nos olhos e lhes dá a entender que tem nojo delas. Ninguém lhes estende a mão para lhes dar um aperto de mão, ou lhes pergunta se têm mesmo mamas ou se aquilo é um soutien almofadado. Obviamente que isto não acontece, porque elas "parecem mesmo mulheres". Ok, entendi a mensagem há muito tempo.

Numa sociedade que regride, em vez de progredir, digo que, infelizmente, este tipo de situações são "normais". Já me habituei a todo o tipo de disparates, desde ditos a atitudes, a olhares. O que não quer dizer que aceite isso, que me cale, ou que baixe a cabeça. Mas é assim, sendo que o bullying vem sempre mais da parte dos homens do que das mulheres cisgénero, já para não falar das próprias mulheres trans que discriminam as outras.

O estereótipo da mulher trans tarada, super-sexy, toda siliconada continua e pelos vistos vai continuar a ser a forma que esta sociedade doente tem de tolerar pessoas que nasceram com uma pequena diferença. O tipo de homem que se interessa por uma mulher trans também é um estereótipo: regra-geral casados ou comprometidos com mulheres cisgénero, nunca assumindo um papel na estória, e que desejam inversão de papéis. Sim, porque nós só servimos para sexo. As outras, as "mulheres de verdade" é que têm direito a casar-se com eles, a viverem com eles, a serem amadas. Nós somos "os animais sexuais".

Resta-me estar sossegada no meu canto e dar-vos a todos e todas um grande "bem vindos ao maravilhoso século XXI".
 
---> Make Up Artist, cabelo e fotografia: Pedro Miguel Silva